domingo, 28 de abril de 2013

Precisamos falar sobre Carroll


Jeu de mots, traduzido literalmente como "jogo de palavras", é o termo francês para trocadilhos e demais construções que exploram a sonoridade similar de palavras distintas. Termo esse muito mais adequado para descrever um dos muitos talentos de Lewis Carroll. Afinal, Carroll brinca com as palavras. Como, por exemplo, na linda poesia concreta a seguir ilustrando a imaginação de Alice para a história de um rato, a partir de uma brincadeira entre as palavras tale (conto) e tail (cauda).


Típico charme que se perde em traduções. Alguns casos são difíceis de perceber mesmo para os que se arriscam a ler no original.
"The master was an old turtle - we used to call him Tortoise."
"Why did you call him Tortoise, if he wasn't one?" Alice asked.
"We called him Tortoise because he taught us."

Aqui precisei pronunciar em voz alta para perceber a homofonia, tamanha a distinção na grafia de tortoise e taught us (algo como tótâs, já que o inglês britânico praticamente não pronuncia o R). 

Para chegar a esse efeito, Carroll usa de conhecimento e malícia, como um músico que sabe qual nota tocar para nos fazer esperar ansiosamente pela próxima.

Em Através do Espelho, quando Alice está perdida na floresta com placas confusas indicando a casa de Tweedledee e o lar de Tweedledum, a surpresa é enorme quando o capítulo é finalizado por uma frase sem ponto final e de transitividade duvidosa.
(...) she recovered herself, feeling sure that they must be

Be o quê, oh céus? Cadê o objeto direto que a tia me ensinou?
E aí você vira a página e vê o seguinte:



E você junta tudo: "(...) feeling sure that they must be Tweedledum and Tweedledee". E aí que rimou. Entre os capítulos de um texto em prosa, ele faz poesia.

Carroll também incorpora personagens de outras histórias e canções infantis aos mundos que Alice visita - o que claramente influenciou seus fãs Barrie e Monteiro Lobato. Destaco a interação de Alice com Humpty Dumpty, personagem de uma nursery rhyme (tipo de canção tradicional destinada ao público infantil), que no livro de Carroll diz atribuir às palavras o significado que bem entende.

Alice e Humpty Dumpty e o texto de Carroll fazendo referência à letra da canção

When I make a word do a lot of work like that, I always pay it extra

Mas não só autores infantis foram influenciados por Carroll. Ele certamente foi responsável pela representatividade do gênero nonsense na cultura da Inglaterra - como nas letras insanas dos Beatles - e no humor mundial até os dias de hoje. E até por isso esses livros de 1860 permanecem atuais.

O mérito dessa fama não é só de Carroll: considera-se que nenhuma edição de Alice é completa se não trouxer as ilustrações de Tenniel. Carroll, que por diversas vezes conversa diretamente com o leitor, chega a mencionar as ilustrações em seu texto.

"Se você não sabe o que é um Grifo, veja a figura"

Tanto Alice's Adventures in Wonderland como Through the looking glass - and what Alice found there são repletos de belos poemas, das divertidas induções lógicas de Alice e de muita brincadeira com as palavras. 

Para encerrar, deixo vocês com uma provinha do poema Jabberwocky, no melhor estilo nonsense, que Alice encontra com letras espelhadas (naturalmente, afinal assim são os textos no mundo através do espelho) e depois pede pra Humpty Dumpty explicar.


Jabberwocky

8 comentários:

Luiz Carlos M. Monte disse...

Tortoises, para os ingleses são as tartarugas terrestres, turtles são tartarugas de qualquer tipo.
O professor (master) era uma tartaruga, mas não uma tortoise. Todavia era chamado pelos alunos de Tortoise porque ele "taught us" (nos ensinava)... E... Como você disse... Tortoise e taught us têm a mesma pronúncia quase.

Dá muita vontade de ler o livro. Ou melhor, de ouvir você contar do livro.

Lúcia disse...

Ai, que lindo!
Assim fico toda boba :)

Madá disse...

Essa do tortoise foi fantástica. Não confundir com porpoise.
Também adorei ser guiada por você para mundo Carroll da Alice.
Não sabia de onde vinha esse humor non-sense britânico que vc bem identificou e eu me lembro logo do Monty Python dos anos 70.
Quero mais :)

Lúcia disse...

É geinal mesmo, tia!
E pode deixar que tem mais pra vir. Esses livros dão muito pano pra manga!
Beijos e que bom que você gostou :)

Filipe Chamy disse...

Beware the Jabberwocky, my son!
[Poema que me fez perder o medo de poesia]

Lindos os livros do Carroll, excelente este post. Deu conta de mostrar duas coisas relevantíssimas ao caso: a grande influência dessas obras nas culturas e expressões mais diversas, e a empolgação irrefreável que vem com a leitura das aventuras da Alice!

Citrus disse...

Belo artigo!
Que tal um outro sobre o texto imaginativo do Jabberwocky? :-)

Lúcia disse...

Poxa, muito obrigada pelo incentivo! Só não sei se tenho capacidade de falar sobre Jabberwocky hehe
Vou pensar em uma sequência para esse post :)
Volte sempre!

Lúcia disse...

Chamy, não tinha te respondido até agora!
Me identifiquei bastante com a história de "perder o medo de poesia", é bem por aí mesmo :)
Os livros são mesmo muuito empolgantes. Que bom que gostou do post!